Despojos | Valdo Kerpen

 

Primeiro, a cidade. Nas metrópoles hoje há hipercirculação em graus nunca antes vistos, abundância ao extremo de quase tudo o que se pode pensar - pessoas, transporte, dinheiro, relacionamentos, informações (elemento que provoca uma verdadeira infodemia, mal típico de dias ansiosos), imagens etc. Um dos perversos efeitos colaterais dessa urbanidade corrosiva é o imenso volume de descarte, com um sistema de reciclagem ainda frágil, mesmo com a economia dos coletores trabalhando a toda, ao menos no modelo brasileiro.

Depois, a arte. O cultivo diário da lida com o tridimensional, em especial no manejo do mármore, material tão icônico como desafiador na criação de esculturas, objetos, esboços. É também a lembrança tão importante dos anos de formação, em que as lições nas oficinas de Carlo Nicoli (1843-1915) e o contato com formas, volumes e planos se amalgamam em panejamentos diversos, com caimentos, dobras, pregas, ausências e presenças de matéria, mais brilhantes ou opacas, eram percebidas com admiração em lócus que poderiam ser o Monumental Staglieno, em Gênova, ou interiores de pequenas joias da Renascença e barrocas pela Itália adentro. Afinal, o país de Bernini (1598-1680), Parodi (1630-1702) e Maderno (1576-1636), entre tantos outros, pode promover testemunhos a não serem olvidados carreira afora.

 

O artista, restaurador de ofício, faz uma espécie de arqueologia do sensível

 

A poética de Valdo Kerpen (São Paulo, 1963) tem no panorama da cidade um hábil trânsito, mas que não se encerra apenas nos atributos, embates e situações atreladas ao cotidiano dos atualmente predominantes grandes agrupamentos, por vezes megalópoles. O artista, restaurador de ofício, faz uma espécie de arqueologia do sensível quando, em caminhadas rotineiras ou derivas com fins mais específicos, coleta restos das mais variadas ordens e os leva para seu ateliê, no Butantã.

 

Perda e permanência, descartável e essencial, conforto e severidade, brutalidade e refinamento, todos são vetores especulares nos quais o paulistano crava sua goiva atenta e inspirada, extraindo resultados exitosos, mas, sem dúvida, com processos muito mais ricos.

 

E é aí, na faina diária e persistente, que Kerpen agrega a maestria na recuperação apurada de peças avariadas e a sabedoria do fazer material - treinado nas oficinas de Carrara, ao norte italiano, um santuário do melhor mármore do mundo - para compor um relicário das basuras do universo do consumo em demasia. Bolsas, camisas, brinquedos, latas de solvente, caixas,  marmitas, sacarias e objetos dos mais diversos revertem a situação de lixo e transmutam suas configurações antes encaradas como nada nobres para algo, espera-se, mais durável, definitivo e relevante. O ateliê, assim, traveste-se de laboratório alquímico e, ao mesmo tempo, cria lastros com as realizações das eras artísticas de ouro e de outras mais recentes nessa história, como as de Brancusi (1876-1957) e de Camargo (1930-1990). Perda e permanência, descartável e essencial, conforto e severidade, brutalidade e refinamento, todos são vetores especulares nos quais o paulistano crava sua goiva atenta e inspirada, extraindo resultados exitosos, mas, sem dúvida, com processos muito mais ricos.

A produção de Kerpen encontra eco também na própria história da Galeria de Arte André. Lembre-se que até 2018 havia um espaço da galeria especialmente dedicado à linguagem tridimensional. Tal filial fora inaugurada com outro mestre do carrara, Domenico Calabrone (1928-2000), no ano de 1988. A exposição teve ressonâncias fortes no circuito, principalmente entre os conhecedores da escultura, já que o artista foi até o norte da Itália obter a pedra-base do que foi exibido e assinou um recorte com várias homenagens concretizadas em peças que se referiam a grandes nomes do material, como Henry Moore (1898-1986) e Jean Arp (1886-1966). E sempre em coletivas e no acervo houve bons expoentes do suporte, como Victor Brecheret (1894-1955), Bruno Giorgi (1905-1993), Alfredo Ceschiatti (1918-1989) e Álvaro Franklin (1935-2020), entre outros.

 

Ao revolver, deslocar, ressignificar e criar a partir das latas de lixo e das bordas (por vezes invisíveis) apagadas da urbe, recoloca o sujeito-artista moderno nesse fluxo contínuo e desorientador do agora, unindo olhar crítico e destreza conceitual-formal

 

Valdo Kerpen, portanto, tem na contemporaneidade dado fundamental da obra, revertendo perspectivas e sentidos iniciais quanto a uma harmonia imbuída de solipsismo e alienação, que poderia ser estanque e infértil. Ao revolver, deslocar, ressignificar e criar a partir das latas de lixo e das bordas (por vezes invisíveis) apagadas da urbe, recoloca o sujeito-artista moderno nesse fluxo contínuo e desorientador do agora, unindo olhar crítico e destreza conceitual-formal. É, então, produtor de um forte testemunho de seu tempo.

Mario Gioia, agosto de 2021

 

 

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